Themanummer poëzie – Originele gedichten

Voor wie het Portugees machtig is, volgen hier de originele gedichten uit het poëzienummer van Zuca-Magazine.

De bijbehorende foto’s zijn alleen te zien in de papieren editie (Nederlandstalig), die u kunt bestellen in de boekhandel (ISBN 9 789492 313607) of rechtstreeks bij Uitgeverij Koppernik of Zuca-Magazine.

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

O POEMA

O poema é um exercício de dissidência, uma profissão de incredulidade na omnipotência do visível do estável, do apreendido. O poema é uma forma de apostasia. Não há poema verdadeiro que não torne o sujeito um foragido. O poema obriga a pernoitar na solidão dos bosques, em campos nevados, por orlas intactas. Que outra verdade existe no mundo para lá daquela que não pertence a este mundo? O poema não busca o inexprimível: não há piedoso que, na agitação da sua piedade, não o procure. O poema devolve o inexprimível. O poema não alcança aquela pureza que fascina o mundo. O poema abraça precisamente aquela impureza que o mundo repudia.

FERNANDO PESSOA

AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração

FERNANDO PESSOA

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p’ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente…
Cala: parece esquecer…

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P’ra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar…

FERNANDO PESSOA

A pálida luz da manhã de inverno,
O cais e a razão
Não dão mais esperança, nem uma esperança sequer,
Ao meu coração.
O que tem que ser
Será, quer eu queira que seja ou que não.

No rumor do cais, no bulício do rio
Na rua a acordar
Não há mais sossego, nem um vazio sequer,
Para o meu esperar.
O que tem que não ser
Algures será, se o pensei; tudo mais é sonhar.

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro.

ÂNGELO DE LIMA

Pára-me de repente o pensamento
Como que de repente refreado
Na doida correria em que levado
Ia em busca da paz, do esquecimento…

Pára surpreso, escrutador, atento,
Como pára m cavalo alucinado
Ante um abismo súbito rasgado
Pára e fica e demora-se um momento…

Pára e fica na doida correria…
Pára à beira do abismo e se demora
E mergulha na noite escura e fria

Um olhar de aço que essa noite explora…
Mas a espora da dor seu flanco estria
E ele galga e prossegue sob a espora.

JOSÉ DE ALMADA NEGREIROS

RECONHECIMENTO À LOUCURA

Já alguém sentiu a loucura
vestir de repente o nosso corpo?
Já.
E tomar a forma dos objectos?
Sim.
E acender relâmpagos no pensamento?
Também.
E às vezes parecer ser o fim?
Exactamente.
Como o cavalo do soneto de Ângelo de Lima?
Tal e qual.
E depois mostrar-nos o que há-de vir
muito melhor do que está?
E dar-nos a cheirar uma cor
que nos faz seguir viagem
sem paragem
nem resignação?
E sentirmo-nos empurrados pelos rins
na aula de descer abismos
e fazer dos abismos descidas de recreio
e covas de encher novidade?
E de uns fazer gigantes
e de outros alienados?
E fazer frente ao impossível
atrevidamente
e ganhar-lhe, e ganhar-lhe
a ponto do impossível ficar possível?
E quando tudo parece perfeito
poder-se ir ainda mais além?
E isto de desencantar vidas
aos que julgam que a vida é só uma?
E isto de haver sempre ainda mais uma maneira pra tudo?

Tu Só, loucura, és capaz de transformar
o mundo tantas vezes quantas sejam as necessárias para olhos individuais.
Só tu és capaz de fazer que tenham razão
tantas razões que hão-de viver juntas.
Tudo, excepto tu, é rotina peganhenta.
Só tu tens asas para dar
a quem tas vier buscar.

ANTÓNIO BOTTO

Nem sequer podia
Ouvir falar no teu nome.
E se fixava o teu vulto,
Irritava-me, sofria
Por não poder insultar-te…

Até que nos encontrámos!

Choviscava, anoitecia.
– Uma chuvinha
Impertinente e gelada
Como sorriso de ironia
Numa boca desejada.

Já não sei o que disseste;
Nem me lembro do que eu disse…

A chuva continuava.
Atravessámos um jardim.
E à luz fosca
Dum candeeiro,
Segredaste ao meu ouvido:
– Quero entregar-te o meu corpo.
E eu acrescentei: – Pois sim.

A chuva tornou-se densa.
Eu ia todo encharcado.
Por fim, chegámos; entrei…

Um marinheiro descia
Ajeitando a camisola
E compondo os caracóis.
Era uma casa vulgar,
Aonde o amor
– Oculto a todos os Sóis,
Se dava e prostituía
A troco da real mola.

Arrependi-me. Blasfemei…
Mas quando abandonei os teus braços
Senti que tinha mais alma!

E nunca mais te encontrei.

CECÍLIA MEIRELES

Não te fies do tempo nem da eternidade
que as nuvens me puxam pelos vestidos,
que os ventos me arrastam contra o meu desejo.
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te vejo!

Não demores tão longe, em lugar tão secreto,
nácar de silêncio que o mar comprime,
ó lábio, limite do instante absoluto!
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te escuto!

Aparece-me agora, que ainda reconheço
a anêmona aberta na tua face
e em redor dos muros o vento inimigo…
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te digo…

DOM DINIS

Ai flores, ai flores do verde pinho,
se sabedes novas do meu amigo,
Ai Deus!, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado?
Ai Deus!, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pôs comigo?
Ai Deus!, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,
aquel que mentiu do que mi_há jurado?
Ai Deus!, e u é?

– Vós preguntades polo voss’ amigo:
eu bem vos digo que é sã’ e vivo.
– Ai Deus!, e u é?

– Vós preguntades polo voss’ amado:
eu bem vos digo que é viv’ e são.
– Ai Deus!, e u é?

– Eu bem vos digo que é sã’ e vivo,
e será vosc’ ant’ o prazo saído.
– Ai Deus!, e u é?

– Eu bem vos digo que é viv’ e são,
e será vosc’ ant’ o prazo passado.
– Ai Deus!, e u é?

LUÍS VAZ DE CAMOES

OS LUSÍADAS CANTO V

37. Porém já cinco Sóis eram passados
Que dali nos partíramos, cortando
Os mares nunca d’ outrem navegados,
Prosperamente os ventos assoprando,
Quando ũa noute, estando descuidados
Na cortadora proa vigiando,
Ũa nuvem que os ares escurece,
Sobre nossas cabeças aparece.

38. Tão temerosa vinha e carregada,
Que pôs nos corações um grande medo;
Bramindo, o negro mar de longe brada,
Como se desse em vão nalgum rochedo.
– «Ó Potestade (disse) sublimada:
Que ameaço divino ou que segredo
Este clima e este mar nos apresenta,
Que mor cousa parece que tormenta?»

39. Não acabava, quando ũa figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura;
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má e a cor terrena e pálida;
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.

40. Tão grande era de membros, que bem posso
Certificar-te que este era o segundo
De Rodes estranhíssimo Colosso,
Que um dos sete milagres foi do mundo.
Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,
Que pareceu sair do mar profundo.
Arrepiam-se as carnes e o cabelo,
A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!

41. «E disse: – «Ó gente ousada, mais que quantas
No mundo cometeram grandes cousas,
Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,
E por trabalhos vãos nunca repousas,
Pois os vedados términos quebrantas
E navegar meus longos mares ousas,
Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,
Nunca arados d’ estranho ou próprio lenho;

42. «Pois vens ver os segredos escondidos
Da natureza e do húmido elemento,
A nenhum grande humano concedidos
De nobre ou de imortal merecimento,
Ouve os danos de mi que apercebidos
Estão a teu sobejo atrevimento,
Por todo o largo mar e pola terra
Que inda hás-de sojugar com dura guerra.

BOCAGE

Importuna Razão, não me persigas;
Cesse a ríspida voz que em vão murmura;
Se a lei do Amor, se a fôrça da ternura
Nem domas, nem contrastas, nem mitigas:

Se acusas os mortais, e os não abrigas,
Se (conhecendo o mal) não dás a cura,
Deixa-me apreciar minha loucura,
Importuna Razão, não me persigas,

É teu fim, teu projecto encher de pejo
Esta alma, frágil vítima daquela
Que, injusta e vária, noutros laços vejo:

Queres que fuja de Marília bela,
Que a maldiga, a desdenhe; e o meu desejo
É carpir, delirar, morrer por ela.

ANA CRISTINA CESAR

QUANDO CHEGAR

Quando eu morrer,
Anjos meus,
Fazei-me desaparecer, sumir, evaporar
Desta terra louca
Permiti que eu seja mais um desaparecido
Da lista de mortos de algum campo de batalha
Para que eu não fique exposto
Em algum necrotério branco
Para que não me cortem o ventre
Com propósitos autopsianos
Para que não jaza num caixão frio
Coberto de flores mornas
Para que não sinta mais os afagos
Desta gente tão longe
Para que não ouça reboando eternos
Os ecos de teu soluço
Para que perca-se no éter
O lixo desta memória
Para que apaguem-se bruscos
As marcas do meu sofrer
Para que a morte só seja
Um descanso calmo e doce
Um calmo e doce descanso.

CECÍLIA MEIRELES

DE QUE SÃO FEITOS OS DIAS?

De que são feitos os dias?
– De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.

Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inactuais esperanças.

De loucuras, de crimes,
de pecados, de glórias
– do medo que encadeia
todas essas mudanças.

Dentro deles vivemos,
dentro deles choramos,
em duros desenlaces
e em sinistras alianças…

ROSA ALICE BRANCO

SEM LIVRO DE RECLAMAÇÕES

No princípio era o verbo
e agora ninguém responde.
O marido, a amante, a família e os amigos,
todos alinhados sobre as campas.
Começam pela oração ou o correspondente laico
e logo passam às súplicas e aos subornos.
Os cemitérios são repartições públicas.
Por isso não há respostas.
Há noites mal dormidas pelas razões erradas.
Esta noite a cama tremeu três vezes. Os teus balbucios
na minha boca. A tua pele húmida. Sou o teu epitáfio?
A família e os demais continuam a acorrer aos balcões
sem os formulários preenchidos.
Os mortos já não pertencem às respostas.
Qualquer adjectivo apodrece como as flores.
Qualquer frase se decompõe sem sujeito.
Sou apenas uma tatuagem na tua campa.
No princípio era o fim.

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA

NESSE VERÃO

Nesse verão, o vento despenteou os campos e os barcos
andaram aos gritos sobre as ondas. A beleza excessiva
das crianças arrombou os espelhos; e as raparigas,
surpreendendo a intimidade dos pais, enlouqueceram
nos corredores e foram perder-se, também elas,
na volúpia dos dias. Nas árvores centenárias

rebentaram frutos que inflamavam a concha das mãos
e escorregavam para a boca com a pressa dos nomes
proibidos. O sol queimou as páginas do livro
interrompido na violência de um poema e revirou
os cantos do único retrato que resistira à moldura
do tempo. De noite, os rapazes deitaram-se às baías

atrás das estrelas; e os amantes, incomodados
com a exiguidade dos quartos, foram fazer amor
nos balneários frios da praia e acordaram nas vozes
um do outro. Já não sei o que disse e o que disseste:
o verão desarruma os sentimentos.

ALICE SANT’ANNA + ZUCA SARDAN

OMBROS CAÍDOS

(…)

no primeiro dia de ginástica
o professor não parava de comparar
as duas, a que treina
e a que está parada faz um ano
você precisa ter o corpo como uma unidade
ele diz, os ombros caídos lembram
os de uma pessoa

(…)

você disse que o poema está sempre tentando
mostrar e disfarçar ao mesmo tempo
se não tivesse escrito ombros caídos por exemplo
não teria jogado luz precisamente
sobre o que deveria passar despercebido?

ZUCA SARDAN

GRALHAS

A Lua refulge
gargalham gralhas
Quem tem boca vai à cova
Um milagrezinho de merda
é só o começo
de todas as mortes

O padre avança as beatas
cantam a procissão
da esquálida Santinha
aos solavancos
de sovaquitos peludos
vai descendo devagar
devagar a pirambeira
escorrega se ajeita
na bordinha
se destrela

Morrem os sapos
de fraque de seda
decapitados

Tangem os sinos…
esquiva esquiva…
a Lua só dá pro Sol
no cemitério…
Mas trepa por cima

MÁRIO CESARINY

POEMA

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto     tão perto     tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

RICARDO DOMENECK

CATWALK

Uma amiga impertinente
me pede, já que eu agora
estou passando pelo vale
da sombra onde a morte
vai bege pela passarela,
com ombreiras e calças
de cintura alta, que eu
diga o que é a tristeza,
que eu a poetize para uso
comunitário, que eu, ora,
entretenha,
feito um mico-leão bege,
a ela e a meus outros cinco
leitores com malabarismos
de vocabulário qualquer.

VERONICA STIGGER

Para Júlia
Fosse meu aniversário em Lisboa,
compraria uns vinte pastéis de Belém
para viagem, atravessaria a rua,
me sentaria num dos bancos da praça
e, enquanto me lambuzasse com os doces,
lembraria que, dali de perto,
partiram as caravelas rumo ao Brasil.

RONALDO BRITO

SAMBA

Devidamente dobrada
qualquer esquina
basta
súbito somos todos
zenões
ascetas populares
cínicos por ruas céticas
propriamente sorvido
qualquer reles café
revela a Idea
distraídos
deciframos a Phisis
a Pólis
peripatéticos pedintes
bem considerada
uma simples tarde
por acaso exata
ilumina a dupla sina
a lua com o sol
a morte com a vida

PAULA GLENADEL

Verões

Rio, fevereiro: a umidade

e a chuva fundem

gente, água, terra, ar,

numa coisa só –

tudo, um mundo-esponja.

Entro (em mim):

sou de madeira inchada

estalo e empeno

e haverá outros verões.

RIO

Quase dois anos-luz de distãncia.

Depois pude ver

o que antes não –

suas montanhas

cristas enlouquecidas

crespas calmarias

como nas telas de vincent

pontas recurvadas

vibrantes contornos

de quase incríveis

caprichos vegetais.

PAULO LEMINSKI

Contranarciso

em mim

eu vejo o outro

e outro

e outro

enfim dezenas

trens passando

vagões cheios de gente

centenas

o outro

que há em mim

é você

você

e você

assim como

eu estou em você

eu estou nele

em nós

e só quando

estamos em nós

estamos em paz

mesmo que estejamos a sós

SOPHIA DE MELLO BREYNER

Para atravessar contigo o deserto do mundo

Para enfrentarmos juntos o terror da morte

Para ver a verdade para perder o medo

Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo

Minha rápida noite meu silêncio

Minha pérola redonda e seu oriente

Meu espelho minha vida minha imagem

E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro

Sem os espelhos vi que estava nua

E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste

E aprendi a viver em pleno vento

JOSÉ LUIZ TAVARES

AQUELE QUE NÃO REBENTA DE RISO

Aquele que não rebenta de riso

ao ver-se a si mesmo ao espelho

e não cobiça do macaco as façanhas

e não faz pontaria ao cimo da alva folha

mal despontem as farfalhantes musas

aquele que crê que apenas um pestanejar seu

é ordem à eternidade e jura que o próprio tempo

tem acorrentado por simples mortal mão

e longe da congeminação dos astros voam

seus terrestres calcanhares

aquele que não pergunta à pedra

pelos golpes amealhados

pelo uso do silêncio num oceano de balbúrdia

e não sente embaraço ante a destreza do cego

e a ligeireza das inúmeras bocas prontas

à admoestação ao que simplesmente se ergue

nas quatro patas da realidade

oh a esse não confies a medida das tuas aflições

simples privilégio do que vive enquanto

caveiras congeminam angústias

para o frio reino de amanhã

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA

DO TEMPO E DA MORTE EM PUNGO ANDONGO

Às vezes penso naquele poente que eu não vi

em Pungo Andongo

E no tempo (esse estranho mito)

Que não fixou os corpos, nem os gritos

Nem o sangue do sol nesse preciso instante.

Às vezes penso em Pungo Andongo

E em quantas vezes se repetirá o rito

O ritual da morte (outro estranho mito)

Tão lúcido e tão breve nesse preciso instante.

MIA COUTO

AS RUAS

No tempo

em que havia ruas,

ao fim da tarde

minha mãe nos convocava:

era a hora do regresso.

E a rua entrava

connosco em casa.

Tanto o Tempo

morava em nós

que dispensávamos futuro.

Recolhida em meu quarto,

a cidade adormecia

no mesmo embalo da nossa mãe.

À entrada da cama,

eu sacudia a areia dos sonhos

e despertava vidas além.

Entre casa e mundo

nenhuma porta cabia:

que fechadura encerra

os dois lados do infinito?

VASCO GRAÇA MOURA

Como meter o mundo num poema?

Como meter o mundo

num poema? Traduzir-lhe

a áspera realidade, a doçura

intranquila?

como meter o trabalho

dos homens, os seus dias,

nessas escassas linhas,

seus ócios, seus espelhos,

seus desvarios, suas

catástrofes de amor?

como meter a morte

nas palavras?

só que uma coisa bela

é para sempre uma alegria inquieta

ALBANO MARTINS

AS PEQUENAS COISAS

Falar do trigo e não dizer

o joio. Percorrer

em voo raso os campos

sem pousar

os pés no chão. Abrir

um fruto e sentir

no ar o cheiro

a alfazema. Pequenas coisas,

dirás, que nada

significam perante

esta outra, maior: dizer

o indizível. Ou esta:

entrar sem bússola

na floresta

e não perder

o rumo. Ou essa outra, maior

que todas e cujo

nome por precaução

omites. Que é preciso,

às vezes,

não acordar o silêncio.

RUI CÓIAS

Dizes afinal, no que é um discurso, companheiro,

chegada a hora de falar do medo, e talvez mentir,

a hora em que de ti me despeço, em que de

novo fruis, da encosta, o largo frio do fim que se aproxima,

“que só podemos acenar, acenar sempre, sem remorsos,

pois é no que perdemos que, poré, arrancamos a

escura pena do dia, para olhá-lo, de longe, pelo que murmura”.

Porque queremos então mentir, companheiro?

— o tempo, que é uma dura distância, deixa-se

cair como a surda folha cobrindo as alamedas,

e onde flutua, como por uma água opaca, levanta

de vez o sonho daquilo que conhecemos

junto da ferida do mundo que ele mudou

e que volta num fio misterioso para nos lembrar.

Mentimos, num nada, num desânimo, de fraqueza,

e tendo ouvido o vento da nossa tremura, o fervilhar

do silêncio isolado, palavra a palavra, até à adversidade

a que as palavras não chegam, olhamos

contudo para trás e, às vezes, acenando

ao calmo regresso em que todos os anos

se aproximam, caminhamos ao sol nos eirados

aos raios luminosos dos campos em que nos juntávamos.

Justamente tal o faz o cheiro acre das chuvas sobre o Verão

crescemos de alma para alma que passa e cauciona

a linha que da vida fomos consentindo que se forme,

e no fim, que pode ser o desta hora em que me chamas, no

largo frio de outro ano aproximando-se, outra hora no alto da colina,

cabe-nos, do que vímos, escutá-lo só pela lembrança.

BERNARDO PINTO DE ALMEIDA

Sombras

Voltam-se as sombras sobre nós.

Coisas soltas, costumes muito antigos

acompanham-nos os gestos, desde perto,

desenham figuras nas paredes.

A casa sossegou. O vento, veloz,

em cada recanto obscuro faz jazigos

onde se perde o olhar, antes aberto.

Crescem líquenes, raros musgos verdes.

As janelas fecharam-se. Vazio

o quarto. Perguntas por fazer

suspendem-se da voz,

para sempre remetida ao seu silêncio.

Nada pois a temer:

sombras somos nós.

JOSÉ SARAIVA

Sou Quem não Fui

cairão em boas mãos,

com certeza, as lembranças

que me escapam

da criança que, em

tempos, fui

do que me não

lembro, faço um Palco

e sou quem não fui

sendo

quem quis ser

JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES

Meditação em Váci Utca

A tarde: passei-a a assistir à guerra

na televisão. Nenhum dos nossos está em falta

enquanto nesses lugares se contam

desaparecidos. Ninguém

da nossa geração esteve na revolução. Outros

(antes de nós)

fizeram as nossas guerras (quando

chegámos aos dias já a guerra havia sido

chegámos para lutar tinha

o ditador caído). Para nós só sobejou outra

sorte de batalhas (levantar cada manhã o

peso imenso das pálpebras)

correr por um lugar na trincheira

do balcão.

A tarde inteira assisti à guerra

pela televisão (deste lado do ecrã não se

passa frio

ou fome). Sirvo-me um copo de vinho num

gesto despreocupado enquanto assisto em directo

ao estrear de outra batalha. É terrível

quando cai a cor do vinho tinto

no branco puro

da toalha.

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